domingo, 9 de junho de 2013

Prefácio

    Escrito por seu grande amigo, Blanchad Girão.

    Assalta-me uma estranha sensação neste contato com o "DIÁRIO" do Anníbal sobre os longos oito meses e dias que juntos convivemos no cárcere. Adotamos a sistemática dos pequenos registros, ele como que apanhou flagrantes tão perfeitos daquela situação, que sinto  agora, ao ler estas páginas, aquela incômoda impressão de que o tempo retrocedeu e de repente, como num pesadelo, estamos todos a ouvir o ranger soturno daquelas correntes do pavilhão em que nos mantiveram brutalmante privados da liberdade por termos sonhado com um País mais digno para os nossos filhos.

 Em determinados momentos da leitura, assusto-me ao tentar dialogar com o querido companheiro, como se ele estivesse a meu lado, discorrendo sobre as últimas conquistas científicas, ou a libertação dos povos da África. A certa altura, quando ele se refere à música  "Cidade Maravilhosa" dando-lhe como de autoria de Ary Barroso, quse cheguei a puxa-lo pelo braço e dizer-lhe... "Não é do Ary, Anníbal, é do André Filho... ajeita ai o original"...

    Anníbal Bonavides está inteiro nestas páginas. Como sem rebuscos e desvios está a história da pena que nos impingiram perversamente sem julgamento os militares que fizeram a "revolução" de primeiro de abril de 64.

    O livro, sem pretensões a um grande trabalho de memória e análise, cumpre perfeitamenete seus objetivos de registrar, dia a dia, o comportamento na prisão de um numeroso grupo de sonhadores que se tornou, em nível de Ceará, as principais vítimas da quartelada que derrubou o presidente João Goulart e implantou uma cruel ditadura por longos vinte anos, tempo suficiente para atrasar o preocesso de conscientização e de libertação política do povo brasileiro, a par de haver alienado as riquezas nacionais ao capital transnacional e endividado o País aos agiotas americanos, europeus e japoneses.

    "Diário de um Preso Político" revela, igualmente, pelo parâmetro de seu autor, que a luta que as lideranças brasileiras da época de Jango sustentavam situava-se no plano puramente ideológico. Nesse ponto os militares locais se frustrarampor completo, quando o Cel. Hortencio, por exemplo encarregado do IPM, queria saber de cada um de nós onde estavam as armas...

    Armas? As armas dos sonhadores eram apenas as palavras em prol das reformas de base, em defesa de melhores salários para os trabalhadores, da redenção do camponês em regime de miséria absoluta. Anníbal Bonavides, o "líder revolucionário", era nates de tudo um lírico. Estava muito mais para Lorca do que para Guevara. No dia em que sustaram a sua incomunicabilidade, e lhe permitiram um contato com a família, escreveu um bilhetinho à valorosa e amada esposa em que dizia textualmente: " Não me conformei jamais com a separação da família". Assim era ele, como assim éramos todos nós. Esposos e pais amorosos, sem qualquer pretensão a ir para trincheiras derrubar oligarquias. Acreditávamos nos caminhos pacíficos que nos conduziriam a uma siciedade mais justa. Mas o erro estava exatamente aí: os que nos combatiam jamais admitiram a injustiça da sociedade na qual são a classe dominante.

    Anníbal Bonavides, mais que revolucionário, era apenas um poeta social. Seu "Diário" está pontilhado de poesia, como nas páginas 37 e seguintes em que descreve, em primoroso estilo, o diálogo que se estabeleceu no presídio, que ele chama de "miniatura da sociedade cearence",  porquanto nele estavam operário, médicos, advogados, engenheiros, camponeses, estudantes, professores, funcionários públicos e até um sacerdote católico.

    "O diálogo não para, dia e noite escreve Anníbal. Tudo se discute, tudo se investiga, tudo se especula. Origens, causas, efeitos, motivos, objetivos. Quantos são os movimentos? Que é o átomo? Que é eletônica? E cibernética? Quais a leis econômicas fundamentais do sistema socialista de produção? E as leia econômicas do regime capitalista? Você acha mesmo que Marte é habitado? O que é vôo por inércia?". Muitas destas perguntas tiveram suas respostas no curso de palestras e conferências, organizado pelo Coletivo. O curso talvez tenha sido o ponto alto do diálogo, no mês de maio. Revelou principalmente, a sede de conhecimento dos presos políticos.

    Anníbal não perdeu um lance e selecionou os melhores para o "DIÁRIO". Nestas páginas reencontramos alguma das passagens mais emocionantes, que ele descreve com profundo sentimento, como na tenebrosa noite em que se tomou conhecimento, através de um transistor clandestino que tínhamos no presídio, da morte de meu pai, no Interior. Há um capítulo especial do livro reservado a esse episódio, sem dúvida o mais lúgubre de toda a nossa longa permanência no quartel do 23°BC.

    Há figuras que ganham extraordinária dimensão vistas assim a distância, através dos fatos captados pelo companheiro-escritor. Pontes Neto e sua insistente pregação pela manutenção do moral alto do grupo: "Tome tenência, cabra". José Jatahy compondo na prisão, arrancando inspiração na própria desdita, oferecendo uma valsa de belos versos e linda melodia à `filha pequena, a Renata cujo nome estava sempre a repetir. Olavo Sampaio lutando, com a máquina de escrever na cela, preparando petições de habeas-corpus e armando a defesa à`luz das leis iníquas em que nos procuravam enquadrar. Só que não houve uma só lei ou decreto em que pudessemos figurar, simplesmente porque não havia crime na nossa atuação, que se limitava a defender as reformas dentro da ordem constituida. Se crime houve, se subversão aconteceu, foi por parte daqueles que demoliram o arcabouço institucional do País, a partir da deposição do Presidente.

    O camponês Américo Silvestre, inquieto, sedento por maiores conhecimentos, transformando o cárcere na escola que a sociedade lhe negara...Desfilaram muitos, uns mais tímidos - o ferroviário Jonas Daniel chegou a chorar copiosamente quando uma leva de presos foi libertada e ele não constou da mesma - mas todos, inclusive ele, Daniel, se conduziram com muita dignidade, sem se submeter à arrogância dos carcereiros, sem humilhações, de cabeça erguida.

    As tardes de visita dos familiares; a chegada à prisão, com poucos dias de nascida, de minha filhinha Martha Vanessa, que ao ser preso eu deixara no ventre materno no segundo mês de gravidez de Cleide e a indômita valentia de minha esposa que suportou todos os golpes e sofrimentos para dar ao mundo um rebento saudável e belo; a inocente alegria dos filhos das centenas de homens bem casados, queridos e respeitados pelos seus, num exemplo que poderá ter despertado à reflexão alguns dos néscios que nos mantinham encarcerados sem saber nem sequer porque; o emocionante julgamento do campina que havia caido na arapuca de dois companheiros e que foi libertado, sob estridente salva de palmas; o amor e carinho dispensado por todos à gatinha que denominamos " SUB" ( Subdesenvolvida, porque magrinha; ou Subversiva, poque nossa mascote...); os momentos de solidão e nostalgia; a intensa leitura de centena de livros; os banhos de sol, enfim, toda a narrativa daquele roteiro de penitência imposta a réus semculpa, esta contida nas páginas do "DIÁRIO de um Preso Político", que vem a lume depois da morte de Anníbal Bonavides. Deplorável que ele não tivesse a ventura de ver o seu trabalho transformado em livro pelo zelo dessa mulher extraordinária que é Daisa que venera sua memória como honrou e dignificou a sua vida.

    Este é um livro que enriquece a bibliografia do obscuro período de autoritarismo que infelicitou o Brasil e do qual os personagens deste "Diário", foram das primeiras vítimas.

                                                        Blanchad Girão

    

    

    



    

    



    

    

    
    

terça-feira, 4 de junho de 2013

Direito de Defesa


                                              Na véspera da cassação, o autor deste DIÁRIO , encontrando-se ja praticamente preso, sob  custodia militar, enviou ao presidente da Assebmbléia, a seguinte carta:
        "Prezado Colega e Amigo
         Deputado Mauro Benevides:
     No momento em que é suscitado, na Assembléia Legislativa, o problema da cassação de mandatos, considero justo e oportuno dirigirem a V.Excia, por seu intermédio, a todos os Colegas Deputados Estaduais, uma vez que sou um dos parlamentares visados pela drástica medida.
        O direito de defesa é instituição universal e milenar. É princípio essencial, inalienável , de JUSTIÇA e de profunda sabedoria humana. Tal principio cimenta nossas tradições democráticas e republicanas. Cristalizou-se, indelevelmente, no patrimônio doutrinário e jurisprudencial de toda a nossa herança jurídico-cultural, como elemento vigoroso de garantia individual e de segurança da pessoa humana.

       Reverente, pois, a esse postulado natural, invoco, perante V. Excia. E meus ilustres Pares desta Casa, o direito de defesa, exatamente na hora em que a mais delirante pressão  publicitária tenta se abater sobre a independência e o discernimento da Assembléia Legislativa, no afã de influenciá-la e
G induzi-la à prática de soluções precipitadas e injustas.

         Senhor Presidente:
        Até que se conceda a audiência indispensável aos parlamentares visados com a medida de cassação, qualquer processo neste sentido estaria visceralmente parcializado. Seria monstruoso se os julgadores baseassem a sua decisão apenas na coleta de informações externas, não levando em conta as ATAS  TAQUIGRÁFICAS desta Casa ( discursos e apartes dos deputados visados); sobretudo, se os próprios deputados envolvidos no processo de cassação não fossem ouvidos pela Mesa Diretora, por uma comissão especial e pelo Plenário. Tal providência não sendo formalizada, Sr.Presidente, ficaremos privados do mais elementar dos direitos humanos, o sagrado direito de defesa.

        Devo dizer, finalmente, a V.Excia., que ao solicitar-lhe esta oportunidade, a que me considero com todo direito, de defender-me pessoalmente no processo de cassação de um mandato que o povo cearense me conferiu nas urnas de 03 de outubro de 1962, diploma que recebi da Egrégia Corte de Justiça Eleitoral, não me move a intenção de pretender negar perante a Assembléia Legislativa, as minhas convicções políticase ideológicas, que são conhecidase eu nunca as escondi, pois me orgulho de ser autêntico e honesto,de ser patriota verdadeiro, amando imensamente o nosso querido Brasil e o seu grande povo. meu desejo é simplesmente o de demonstrar, diante da Assembléia, que sempre pautei a minha conduta parlamentar nesta Casa fiel aos princípios democráticos e nacionalístas, jamais tendo feito propaganda com finalidades de doutrinação sobre questões de ordem filosófica ou ideológica. Todos os meus ilustres Pares são testemunhas vivas do que afirmo.
        
        Espero, deste modo, as providências de V.Excia. pois entendo irrecusável, em princípio, o direito de defender o meu mandato parlamentar. Direito esse, Sr.Presidente, que é o mesmo de todos os demais parlamentares visados pela medida de cassação.

        Respeitosamente,
        Fortaleza, 8 de abril de 1964
        Anníbal Bonavides - Deputado Estadual

                                                   *************************

        A carta foi lida em Plenário, mas a Assembléia não se dignou de ouvir os acusados. Negou o mais universal e indeclinavel dos direitos, o direito de defesa. Tinha pressa em cassar.







           



quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Orelha" do Diàrio de um PRESO POLÍTICO - Por Oswaldo Evandro Carneiro Carneiro Martins


   A um amplo alojamento coletivo do 23o.BC,ali na Avenida 13 de Maio, com cuja denominação é homenageada essa data nacional, fomos os presos de abril de 1964 recolhidos,depois de interrogados. Passei 33 dias, para muita honra minha,ao lado de Anníbal Fernandes Bonavides e cerca de 70 cidadãos, todos nós privados da liberdade, sob a única acusação real que se nos poderia imputar, impingir ou assacar: a de propugnarmos causas nobres de que são protagonistas o Povo, a Nação, a Pátria, o Brasil.

 Triste era constatar que nossos algozes imediatos atuavam em função de um continuado, técnico e premeditado processo de fanatização política, de lavagem cerebral, de deformação do caráter,de que inconscientemente foram títeres ou agentes, sob a égide dos poderes teorizados pela chamada doutrina da" segurança nacional ". Muito mais triste, porém, o era para um idealista genuíno e sans reproche como Anníbal, do que para nós outros, que sempre fôramos menos otimistas, menos confiosos, menos desarmados.

  Os inquéritos policial-militares a que nos submeteram eram quadros de uma só e mesma farsa. Inúltil seria, como se comprovou depois,defender-se, argumentar, fazer exortarções. Diário de um Preso Político é bem um testemunho disso tudo, a evidenciar não a subversão da processualística penal, mas a sua inversão, que o preso Francisco Augusto Pontes expressava num aforismo irônico: "Os punidos serão os culpados".

 Este livro faz parte de nós todos. reatam-se nele os elos da nossa corrente. Mediante a sua leitura, a consciência ingênua de muitos é posta a nu. Duas décadas já são passadas, mas neste instante sabemos que o tempo fecundou as nossas mentes amadureceu-as, fê-las mais consequentes ,excetuadas as que evoluiram, para confirmação gritante da regra.

 Aqueles que não viveram os dias ominosos da repressão política nem sentiram na alma ou no corpo essa experiência têm muito a colher neste diário, cujos registros se convertem num inestimável critério de ajuizamento do golpe militar de 1964 . Contam estas páginas mais do drama que da trama, mas de outra forma não poderia ter sido.já que se deparava uma partida de xadrez sem "abertura" racional, em meio aos lances bisonhos e tateantes dos " peões" e " cavalos" das " brancas". Só mais tarde começaram a movimentar-se os "bispos" respectivos ,ou seja, os teóricos, os fautores e intérpretes do Ato Institucional n°1, que se distingue da Constituição do Estado Novo getuliano,sobretudo,por não ter tido projeto. "Revolução" é nome de crisma, não de batismo.

 Esses pobres "peõs" e" cavalos" estavam desaparelhados para a tarefa contra-revolucionária que lhes fora cometida. O Know how  da tortura não se lhes transmitira ainda, de modo que se poderia qualificar a diátese de então como mal benigno, que só posteriormente se tornaria maligno. É verdade que esse aspecto isenta de dolo os coitados desses homens investidos inopinadamente no posto de policiais  ecarcereiros. Entre eles, porém, muitos radicalizaram, aprofundaram e consciencializaram seu papel.

 Contudo, este livro sirva de punição moral de alguns  "revolucionários"por ação ou por omissão, que podem assim fazer sua mea culpa, penitenciar-se, reeducar-se e participar da democracia, que é como o sol - até nos pólos nasce de novo,mesmo depois de uma noite de seis meses. Que eles possam também entoar " a canção do amanhecer do sol", a que alude uma valsa de Jose Jatahy, composta na prisão e transcrita no Diário.

 Em confiança no futuro, no raiar do novo dia, da libertação metarforizada no sol que gera a vida, que nos aquece e ilumina, que um reformador egípcio, o faraó Amenófis IV (1424-1388), chegou a deificar; essa confiança Anníbal a possuia, tendo-a proclamado e inscrito na obra que ora se nos oferece. Atingindo pessoalmente, em si e em sua família,por sucessivos golpes políticos, econômicos e sociais da reação, especialmente com a cassação do seu mndato de deputado estadual, com a suspensão dos seus direitos políticos por 10 anos, com a preterição do seu filho no concurso para locutor esportivo em que obtivera o primeiro lugar, e com a demissão de sua esposa do emprego público Anníbal deixou para a posteridade o seguite depoimento em bilhete enviado à companheira e passado ao Diário, com data de 23 de setembro do ano aziago de 1964:

 " Agora é a tua demissão. Isto é o que se pode chamar de bloqueio total. Um bloqueio político e econômico, com a supressão da liberdade e do direito de conquistar o pão de cada dia. Mas, vamos para frente. O sol nasce para todos. Sua luz não pode ser monopolizada por nenhum truste, na superficie da terra".