quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Orelha" do Diàrio de um PRESO POLÍTICO - Por Oswaldo Evandro Carneiro Carneiro Martins


   A um amplo alojamento coletivo do 23o.BC,ali na Avenida 13 de Maio, com cuja denominação é homenageada essa data nacional, fomos os presos de abril de 1964 recolhidos,depois de interrogados. Passei 33 dias, para muita honra minha,ao lado de Anníbal Fernandes Bonavides e cerca de 70 cidadãos, todos nós privados da liberdade, sob a única acusação real que se nos poderia imputar, impingir ou assacar: a de propugnarmos causas nobres de que são protagonistas o Povo, a Nação, a Pátria, o Brasil.

 Triste era constatar que nossos algozes imediatos atuavam em função de um continuado, técnico e premeditado processo de fanatização política, de lavagem cerebral, de deformação do caráter,de que inconscientemente foram títeres ou agentes, sob a égide dos poderes teorizados pela chamada doutrina da" segurança nacional ". Muito mais triste, porém, o era para um idealista genuíno e sans reproche como Anníbal, do que para nós outros, que sempre fôramos menos otimistas, menos confiosos, menos desarmados.

  Os inquéritos policial-militares a que nos submeteram eram quadros de uma só e mesma farsa. Inúltil seria, como se comprovou depois,defender-se, argumentar, fazer exortarções. Diário de um Preso Político é bem um testemunho disso tudo, a evidenciar não a subversão da processualística penal, mas a sua inversão, que o preso Francisco Augusto Pontes expressava num aforismo irônico: "Os punidos serão os culpados".

 Este livro faz parte de nós todos. reatam-se nele os elos da nossa corrente. Mediante a sua leitura, a consciência ingênua de muitos é posta a nu. Duas décadas já são passadas, mas neste instante sabemos que o tempo fecundou as nossas mentes amadureceu-as, fê-las mais consequentes ,excetuadas as que evoluiram, para confirmação gritante da regra.

 Aqueles que não viveram os dias ominosos da repressão política nem sentiram na alma ou no corpo essa experiência têm muito a colher neste diário, cujos registros se convertem num inestimável critério de ajuizamento do golpe militar de 1964 . Contam estas páginas mais do drama que da trama, mas de outra forma não poderia ter sido.já que se deparava uma partida de xadrez sem "abertura" racional, em meio aos lances bisonhos e tateantes dos " peões" e " cavalos" das " brancas". Só mais tarde começaram a movimentar-se os "bispos" respectivos ,ou seja, os teóricos, os fautores e intérpretes do Ato Institucional n°1, que se distingue da Constituição do Estado Novo getuliano,sobretudo,por não ter tido projeto. "Revolução" é nome de crisma, não de batismo.

 Esses pobres "peõs" e" cavalos" estavam desaparelhados para a tarefa contra-revolucionária que lhes fora cometida. O Know how  da tortura não se lhes transmitira ainda, de modo que se poderia qualificar a diátese de então como mal benigno, que só posteriormente se tornaria maligno. É verdade que esse aspecto isenta de dolo os coitados desses homens investidos inopinadamente no posto de policiais  ecarcereiros. Entre eles, porém, muitos radicalizaram, aprofundaram e consciencializaram seu papel.

 Contudo, este livro sirva de punição moral de alguns  "revolucionários"por ação ou por omissão, que podem assim fazer sua mea culpa, penitenciar-se, reeducar-se e participar da democracia, que é como o sol - até nos pólos nasce de novo,mesmo depois de uma noite de seis meses. Que eles possam também entoar " a canção do amanhecer do sol", a que alude uma valsa de Jose Jatahy, composta na prisão e transcrita no Diário.

 Em confiança no futuro, no raiar do novo dia, da libertação metarforizada no sol que gera a vida, que nos aquece e ilumina, que um reformador egípcio, o faraó Amenófis IV (1424-1388), chegou a deificar; essa confiança Anníbal a possuia, tendo-a proclamado e inscrito na obra que ora se nos oferece. Atingindo pessoalmente, em si e em sua família,por sucessivos golpes políticos, econômicos e sociais da reação, especialmente com a cassação do seu mndato de deputado estadual, com a suspensão dos seus direitos políticos por 10 anos, com a preterição do seu filho no concurso para locutor esportivo em que obtivera o primeiro lugar, e com a demissão de sua esposa do emprego público Anníbal deixou para a posteridade o seguite depoimento em bilhete enviado à companheira e passado ao Diário, com data de 23 de setembro do ano aziago de 1964:

 " Agora é a tua demissão. Isto é o que se pode chamar de bloqueio total. Um bloqueio político e econômico, com a supressão da liberdade e do direito de conquistar o pão de cada dia. Mas, vamos para frente. O sol nasce para todos. Sua luz não pode ser monopolizada por nenhum truste, na superficie da terra".